sexta-feira, 22 de junho de 2012

Sobre malas prontas e Fernando Pessoa


Quantas despedidas serão necessárias para nos sentirmos livres? Quantas cartas sobre o passado precisarão ser escritas para sermos dignos de asas? Não cheguei a pensar que um dia a altura poderia provocar sopros frios em meu estômago. Estou certa de que não há como se perder de uma vida inteira, há somente uma maneira não tão viável de abandonar a si mesmo. Os detalhes sempre estarão dispostos a nos entregar, como a caixa verde que nunca permite ao meu esquecimento ir longe demais. Sempre há um resquício que nos puxa de volta para a realidade que tanto desprezo. Já faz muito tempo desde a última vez em que me enxerguei presa ao pudor, ao medo, ao descaso. Presa a tudo aquilo que remete insegurança: O instável, volátil.

Fechei a mala com três pedidos, dois sonhos e um caderno. É possível ouvir os meus passos por toda a casa, desfilando ansiedades. Porque um único horizonte jamais será o suficiente. Eu tenho interesse pelas histórias que precisam ser contadas, mesmo quando nunca aconteceram. Eu preciso voar um pouco mais alto, para nutrir a ilusão de encontrar a mim mesma em um lugar distante. A liberdade continuará sendo uma mentira muito bem articulada, mas o mundo jamais será grande o suficiente para não caber em um álbum de fotografias.

Então eu me desmanchei na intenção de ser redescoberta. Talvez assim tudo o que eu confesso em segredo por aqui seja rico o suficiente para me conceder uma lista de heterônimos e uma porção de pares de óculos diferentes. Assim como fez Fernando Pessoa. Ou melhor, Álvares de Campos. Ricardo Reis. Alberto Caeiro. E uma porção de tantos outros que Pessoa concedeu a mão para redigir suas poesias.

“De eterno e belo, há apenas o sonho.”

Por quatro semanas serei grande o suficiente para alcançar as nuvens e não olhar para trás. E para que caiba entre a bagunça da minha mala e o meu sonho, uma porção de histórias que, apesar de não serem minhas, sejam contadas com a ajuda das minhas mãos. Sem prender os cabelos ou as pernas. Com a franja na altura das sobrancelhas para deixar o verde brilhar um pouco mais forte. Com toda a sensibilidade que sou capaz de suportar.

E com tudo aquilo que o mundo foi feito para oferecer. 

Sobre o reflexo (medo) no espelho


 Me explica, bebê.

 É como estar se desprendendo. E isso implica em arrancar, como se fosse uma camada velha da sua pele. Caem centenas de células o tempo inteiro, e cada uma carrega uma parte de mim. Uma parte que vira um passado cheio de inocência e de arrependimentos também. Mas é um passado bonito, não deixa de ser. E aí eu me deparo com uma pessoa totalmente diferente no espelho, isso me assusta e ao mesmo tempo me acalma. Como se fosse uma mulher que tomasse o lugar e as rédeas. Uma pessoa mais corajosa.

 Como no sonho dos cavalos e do espelho! Fatalmente nos tornaremos aquela mulher que não chora por nada, mas dentro, aquela lágrima... Que carrega o peso de todas as outras, todas as fotografias que você viu sendo mastigadas. Não sei se isso é bom. Lembra do Robert?

 Lembro sim.

 Ele ia experimentando tudo, mesmo o que fazia mal, e a cada vez que ele experimentava, ele queria "subir de nível", e se maltratar mais ainda, mais ainda... Pra ver até onde ele podia chegar. E somos iguais a ele.

 É o que a gente anda fazendo... Pagando pra ver.

— Que bom que tá com medo, bebê. Você precisa disso, igual a mim. 

 Isso é uma coisa boa. Aliás, mais que isso. Porque... Eu não consigo me ver em uma vida que corra para longe dos traços do Robert e tantos outros. 

 Só não quero que a gente tenha o mesmo fim que ele. 

 Não teremos. 

 Como sabe? 

 Porque eu enxergo a Patti. O tempo todo. Um faz parte do outro. O Robert é a parte mais destrutiva que a gente tem aqui dentro. Ele é quem nos força a abrir a janela e sentir vontade de pular só pra sentir o vento contra o rosto e a liberdade. Mas a Patti é quem corre, entende? Ela sente o vento do mesmo jeito e consegue permanecer inteira. 

 Mas... Às vezes sinto vergonha por não ser como ele. Queria saber como é não medir consequências, agir com instinto, sabe? É disso que somos feitos, desde o princípio. Por que a gente não caminha por esse caminho? 

 Eu também sinto. Porque isso nos torna um pouco mais covarde, e a covardia é vergonhosa. Afinal de contas, de que vale uma vida se não podemos vivê-la de maneira heroica?

 Eu sei que pessoas assim terão fins horríveis, mas eu queria não saber disso, ou fingir que não sei, e não consigo.

— O Kurt se suicidou, o Robert morreu da mesma forma que o Cazuza e o Renato... E eu choro às vezes por não ter a resposta para essas indagações.

 Queria tanto que eles voltassem pra dizer se valeu a pena, queria tanto que alguém me dissesse ou que eu tivesse coragem pra descobrir sozinha.


Mariane Cardoso & Isla Cezzani
 

terça-feira, 19 de junho de 2012


Intocáveis


Part. I


Nós não pretendíamos chegar a lugar algum. Os sonhos cabiam perfeitamente entre as paredes do nosso ateliê. Entre o nosso colchão, as cinzas do cigarro e a vitrola, havia segredos onde Nicole preferia não tocar. Por alguma razão ela sempre abandonou seus poemas pela metade, mas no fundo as marcas nas folhas causadas pelas suas lágrimas já eram o suficiente para tornar qualquer mísero verso em algo capaz de atravessar a alma.

Nicole brotou do meu silêncio. E de tudo aquilo que eu tinha medo.


Ela era semelhante a um borrão: Por mais desastroso e desesperador que possa parecer, é impossível excluir de si toda a beleza apenas pelo medo de ser triste. No dia em que a encontrei pela primeira vez, ela estava sentada em uma cafeteria com os cabelos desgrenhados e sujos de tinta. Na mão direita segurava uma caneta contra o papel, na mão esquerda agarrava o pingente de sua corrente com uma força notável. Nicole parecia sustentar uma agonia doída enquanto percorria cada canto do ambiente com os olhos. Foi assim que nos encontramos. Quando ela pousou seus olhos nos meus, acidentalmente. Era apenas o primeiro momento e Nicole já sabia como roubar as minhas palavras com uma astúcia assustadora. O que ocorreu nos segundos seguintes permanece intacto (existem detalhes que de tão belos e singelos, tornam-se inalcançáveis). E o bloco de notas que ela tinha em mãos naquela manhã chuvosa, hoje eu seguro durante todas as noites buscando encontrar alguns dos vestígios da sua alma que nem sempre sou capaz de capturar.


Nicole e eu arrumamos nossas malas e abandonamos o mundo que até então conhecíamos. O ateliê passou a delimitar o território do nosso universo e além deste, o único caminho que nós seríamos capazes de enfrentar, eram as estradas. E enfrentamos. Por quinze dias percorremos todo o litoral e nesse curto espeço de tempo descobrimos partes das nossas individualidades que por tanto tempo permaneceram escondidas.


- Mais um dia sem saber onde pousaremos nosso corpo. Isso não te assusta, amor? – Ela perguntou sem desviar os olhos do horizonte. Permanecia intacta, debruçada na janela do carro enquanto o vento beijava seus cabelos.


- Por que assustaria? Nós sonhamos com essa incerteza durante muito tempo para temer sua concretização, Nicole.


- Mas você sabe que eu tenho medo. Nossa cama parece mais segura do que este pôr-do-sol. Ele me engole e eu me sinto a criatura mais covarde do mundo por estar chorando. Existem pedaços dos nossos sonhos que nem mesmo nós dois fomos capazes de reconhecer. Pura covardia. Puro medo de nos derrubarmos com as nossas verdades mais podres. A gente precisa saber por onde ir, amor. Não posso perdê-lo na próxima virada. Nós desconhecemos o abismo que existe entre o espaço do nosso sonho e a realidade que nos corta.


Calei-me como todas as vezes em que Nicole roubava minha voz e meu choro. Como todas as vezes em que ela me tocava sem pudor… Ela é um misto de luz e sombras do qual não sou capaz de me desvencilhar.


- Eu amo você, meu bem. Agora cale seus medos mais absurdos e sonhe um pouco. Chega de pôr-do-sol. – Eu lhe disse enquanto ela se encolhia no banco do carro.


- Promete fazer um apanhador de sonhos pra mim quando voltarmos ao ateliê?


- Eu prometo. 


Nicole vem de um lugar perdido entre histórias reais e seus sonhos. Talvez seja esta a verdade que me torna incapaz de tê-la completamente envolta em meus braços. Eu a perdi numa daquelas madrugadas gélidas e calmas, quando não fui capaz de atravessar a janela que desenhava imagens do universo que Nicole escondia. E mesmo quando ela me encara sem trajes e sem medos, eu ainda sinto que parte dela não está presente. Talvez seja necessário rasgar todos os seus poemas e jogar fora todas as suas pinturas... Ela sempre será aquela que abandona a si mesma enquanto deixa que sua arte vá escapulindo e aderindo traços e formatos. No fundo sei que prefiro ter apenas um pedaço dela, o pedaço que se encaixa em meu corpo durante as noites longas e frias. Nos momentos em que nos encontramos, e logo, nos perdemos: Um no corpo do outro. São estas as noites em que Nicole não desperta chorando. A outra parte da sua alma que parece transcender em sua arte, eu prefiro que continue sendo guardada entre os segredos que recolhem sua magia, e que por vezes, liberta-se.


Como as borboletas que duram um dia,

e uma eternidade. Imortais. 

sábado, 16 de junho de 2012

Embriaguem-se


É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso”. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
Baudelaire 

terça-feira, 5 de junho de 2012

"(...) Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso 
Mas a outra metade é um vulcão. (...)"



Oswaldo Montenegro