segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

La Belle Époque


       A França nunca havia presenciado dias tão intensos. Os bordeis eram as casas dos sonhos mais desvairados e as esquinas alimentavam a solidão dos escritores embriagados e iludidos; com todo o álcool e o sexo que as donzelas lhes concediam, junto ao beijo de despedida que se anulava na tristeza dos poemas corroídos pelas cinzas dos cigarros. Cigarros estes que entregavam aos lábios o sabor amargo da falta de amor. Ainda mais bela, a rainha se exibe durante as madrugadas. Paris, que brilha nas luzes que guiam os amantes dentro de histórias que jamais serão reveladas. Os cabarés, poço de poesias mal compreendidas, eram o palco para todas as desventuras estimuladas pelos sonhos dos artistas sem donos. Assim ocorreu com Jasmine. Mulher que não sabia o que havia se tornado, por isso decidiu fugir. Encontrou abrigo e sustento no próprio corpo e descobriu que a liberdade pode custar tudo aquilo que nem sempre estamos dispostos a oferecer. Passou então a conviver com o silêncio dos seus sonhos e o breve ensaio de suas danças.
     Apesar da tristeza, Jasmine tinha o encanto. E o destino que nunca foi muito bondoso com seus ventos, encarregou de lhe entregar ao mundo que os palcos clamam, a burguesia consome, e as mentiras são contestadas pelo brilho duvidoso em cada olhar. Cada ato, era a entrega. Jasmine não sabia mais ao que pertencia, sua alma é de quem transcende o corpo pelo amor de abrir as asas e entregar-se. Entretanto, como eu havia dito, ela não sabia. Acreditava que além dos palcos, os cabarés lhe bastavam. Como a forma de amor mais primitiva e efêmera, que transforma noites em eternidade. A entrega do corpo e nada mais. Segundo ela, poesia alimenta o coração, e o toque, alimenta o corpo. Em segredo, ela amava com um tipo de piedade egoísta, pois encontrava nos escritores fracassados o alimento de quem precisa acreditar. Ela era a salvação dos embriagados e desesperançosos que despertavam antes do sol nascer apenas para abrir as cortinas e enxergar os raios de sol moldando-se no seu corpo nu de curvas delicadas. Dos seus amores restavam apenas cinzas de cigarros, copos com bebida pela metade e, sempre, um bilhete junto aos lençóis sujos de prazer.

      O teatro beirava a angústia da espera pela estreia do novo espetáculo. Por três dias Jasmine precisou manter-se inteira.


Ato I

O fôlego sempre será perdido enquanto houver histórias de amor proibido. Era difícil disfarçar os beijos e ignorar os arrepios. O palco é um universo de meias verdades: Apesar de sustentar falas e atos articulados, será sempre incapaz de impedir o alcance das consequências geradas pelo envolvimento dos sentidos. É esta a explicação para o desconcerto de Jasmine, que por sua vez, se considerava mulher o bastante para não fraquejar diante de Daniel.


— Amar pode ser perigoso, Daniel. Especialmente quando somos feitos por desejos de um egoísmo profundo.  Confessava Jasmine enquanto tragava seu cigarro. 
— Chega a ser uma ofensa ouvir isso vindo dos seus lábios. Você se atira pelo amor aos palcos todas as noites e não há medo em você. 
 Mas você sabe bem, meu querido, que neste nosso ofício nós somos amantes e cúmplices dos personagens que invadem nosso corpo. Quem o beijou há meia hora atrás não fui eu... Oras, veja bem, nos amamos apenas enquanto as cortinas vermelhas estão abertas. Toda aquela coragem e amor, não são meus.
 Apesar de você ser formidável na manipulação das palavras, não acredito em uma única sentença do que diz. 
 Diga-me como, e eu provarei. 
— Amanhã. Após o espetáculo, quando todos forem embora. Espere por mim no palco, mas com as cortinas fechadas. 
   

Ato II

      Após deixar Daniel, Jasmine evitou o cabaré e se conduziu direto ao seu apartamento que ficava aos fundos do teatro. Não entendia o porquê de se sentir saciada sem nem ao menos ter sido tocada por um homem, mas evitava as respostas para tais questões. Em algum lugar dentro de si, ela tinha consciência de que toda sua convicção sobre estar inteira mesmo quando se concede aos amores e prazeres de um homem, estava prestes a ser derrubada, e era Daniel quem lhe roubara as falas, a cena e o ato. O teatro, assim como o amor, é traiçoeiro. Jasmine acreditava que se perdia e esquecia de si a partir do momento em que o pó de arroz moldava sua face, quando toda a tinta necessária para embelezar seus olhos era utilizada. Desta forma ela acreditava que estava acima das desventuras que o amor é capaz de provocar. Uma das poucas coisas que sabe sobre a vida é que amar pode se tornar o último suspiro de uma alma que outrora veio a cintilar. O amor, para Jasmine, rouba a magia e entristece os corações. Sabe-se do medo que ela sente diante de Daniel, e se conhece também a origem da força desse medo. Depois de tantos que a tocaram e a despiram com as mãos, Daniel parece despi-la com os olhos. Por isso Jasmine estremece, mas não assume a fraqueza de ser atingível. Por um breve segundo lhe passou pela cabeça que talvez fosse melhor evitar o que a noite seguinte guardava, entretanto sua covardia implicaria em uma noite sem espetáculo e Jasmine poderia abandonar a si, mas nunca ao palco.

     A grande noite chegou e as cortinas foram abertas. Daniel, por alguns momentos, parecia não lhe causar tamanho impacto. Talvez o segredo sejam as cortinas vermelhas.


Ato III


     
     O ato final arrancou palmas de todo o teatro, até as paredes pareciam vibrar. Sem enxergar definidamente os rostos daqueles que se colocaram de pé para homenagear uma noite de pura arte, romance e magia, Jasmine sentia o som das palmas percorrer o seu corpo provocando arrepios em sua pele... Era a maneira mais pura e real de sentir o agradecimento daqueles que foram alcançados pela arte de representar. Ela sabia... O triunfo não foi apenas seu, mas também daquele que no momento segura sua mão com firmeza e sorri um sorriso deslumbrante enquanto acena para o público.  Naquela noite, os dois perceberam que a empolgação transmitida pelo público foi diferente, mais pulsante e até mesmo intrigante. O público talvez tenha presenciado não só uma representação ensaiada e bem articulada, mas também uma confissão. A ansiedade contida nos olhos de Jasmine e o calor nos movimentos de Daniel. Eles já haviam assumido, e Jasmine, apesar de continuar sem reconhecer, tornou-se vulnerável ao que o coração é capaz de ordenar.

    As cortinas se fecharam e o tumulto deu lugar ao silêncio delicado que cobria as paredes do teatro. Os olhos escuros de Jasmine deixavam escapar verdades sobre ser alcançável.

 Há um rastro de estrelas nos seus olhos, Jasmine.

     As roupas que eram abandonadas pelo chão eram como pedaços de uma camuflagem involuntária. Não havia pressa, como Jasmine estava habituada. Aos poucos ela percebia a sutileza que surgia através dos movimentos envolvidos pelo carinho de Daniel. Seu corpo parecia dançar em um ritmo aveludado, cheio de mistérios que estavam prestes a ser revelados. Finalmente, a entrega desmedida. Longe do mundo saturado por amores malditos e poetas embriagados. As cortinas vermelhas devidamente fechadas, o corpo nu e inteiro. Longe de personagens ou da arte pré-fabricada, eram atos vivos, humanos e artisticamente sublimes. Coberta pelo amor junto ao prazer que Daniel lhe concedia, Jasmine assumiu o papel de revelar a si mesma nos braços de um homem. Mulher de lábios vermelhos, cabelos longos e olhos escuros... Corajosamente, amante do mundo. Seu corpo falava entre arrepios e Daniel reconhecia a grandiosidade do que havia em suas mãos. A mulher inalcançável do Moulin Rouge, envolvida em seu corpo, redescobrindo a utopia da Belle Epoque; L'amour.

—O que me diz sobre correr o risco de amar? — Perguntou Daniel ao repousar a cabeça sobre os seios de Jasmine.
Lhe digo que mistérios passaram a me atrair com mais intensidade desde o momento em que você me tocou.



    Era dia dois de abril de 1912. Os últimos suspiros da verdadeira boemia parisiense. A Paris de automóveis barulhentos, artistas desventurados e cabarés cheios de contos que valem por toda uma época de mulheres fortes, sedutoras e – aparentemente – inalcançáveis. 

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