Apesar da tristeza, Jasmine tinha o encanto. E o destino que nunca foi
muito bondoso com seus ventos, encarregou de lhe entregar ao mundo que os
palcos clamam, a burguesia consome, e as mentiras são contestadas pelo brilho
duvidoso em cada olhar. Cada ato, era a entrega. Jasmine não sabia mais ao que
pertencia, sua alma é de quem transcende o corpo pelo amor de abrir as asas e
entregar-se. Entretanto, como eu havia dito, ela não sabia. Acreditava que além
dos palcos, os cabarés lhe bastavam. Como a forma de amor mais primitiva e
efêmera, que transforma noites em eternidade. A entrega do corpo e nada mais.
Segundo ela, poesia alimenta o coração, e o toque, alimenta o corpo. Em
segredo, ela amava com um tipo de piedade egoísta, pois encontrava nos
escritores fracassados o alimento de quem precisa acreditar. Ela era a salvação
dos embriagados e desesperançosos que despertavam antes do sol nascer apenas
para abrir as cortinas e enxergar os raios de sol moldando-se no seu corpo nu
de curvas delicadas. Dos seus amores restavam apenas cinzas de cigarros, copos
com bebida pela metade e, sempre, um bilhete junto aos lençóis sujos de prazer.
O teatro beirava a angústia da
espera pela estreia do novo espetáculo. Por três dias Jasmine precisou
manter-se inteira.
Ato I
O fôlego sempre será
perdido enquanto houver histórias de amor proibido. Era difícil disfarçar os
beijos e ignorar os arrepios. O palco é um universo de meias verdades: Apesar
de sustentar falas e atos articulados, será sempre incapaz de impedir o alcance
das consequências geradas pelo envolvimento dos sentidos. É esta a explicação
para o desconcerto de Jasmine, que por sua vez, se considerava mulher o
bastante para não fraquejar diante de Daniel.
— Amar pode ser perigoso, Daniel.
Especialmente quando somos feitos por desejos de um egoísmo profundo. — Confessava Jasmine enquanto
tragava seu cigarro.
— Chega a ser uma ofensa ouvir isso vindo
dos seus lábios. Você se atira pelo amor aos palcos todas as noites e não há
medo em você.
— Mas você sabe bem, meu querido,
que neste nosso ofício nós somos amantes e cúmplices dos personagens que
invadem nosso corpo. Quem o beijou há meia hora atrás não fui eu... Oras, veja
bem, nos amamos apenas enquanto as cortinas vermelhas estão abertas. Toda
aquela coragem e amor, não são meus.
— Apesar de você ser formidável na
manipulação das palavras, não acredito em uma única sentença do que diz.
— Diga-me como, e eu
provarei.
— Amanhã. Após o espetáculo, quando todos
forem embora. Espere por mim no palco, mas com as cortinas fechadas.
Ato II
Após deixar Daniel, Jasmine evitou o cabaré e se conduziu direto ao seu
apartamento que ficava aos fundos do teatro. Não entendia o porquê de se sentir
saciada sem nem ao menos ter sido tocada por um homem, mas evitava as respostas
para tais questões. Em algum lugar dentro de si, ela tinha consciência de que
toda sua convicção sobre estar inteira mesmo quando se concede aos amores e
prazeres de um homem, estava prestes a ser derrubada, e era Daniel quem lhe
roubara as falas, a cena e o ato. O teatro, assim como o amor, é traiçoeiro.
Jasmine acreditava que se perdia e esquecia de si a partir do momento em que o
pó de arroz moldava sua face, quando toda a tinta necessária para embelezar
seus olhos era utilizada. Desta forma ela acreditava que estava acima das
desventuras que o amor é capaz de provocar. Uma das poucas coisas que sabe
sobre a vida é que amar pode se tornar o último suspiro de uma alma que outrora
veio a cintilar. O amor, para Jasmine, rouba a magia e entristece os corações.
Sabe-se do medo que ela sente diante de Daniel, e se conhece também a origem da
força desse medo. Depois de tantos que a tocaram e a despiram com as mãos,
Daniel parece despi-la com os olhos. Por isso Jasmine estremece, mas não assume
a fraqueza de ser atingível. Por um breve segundo lhe passou pela cabeça que
talvez fosse melhor evitar o que a noite seguinte guardava, entretanto sua
covardia implicaria em uma noite sem espetáculo e Jasmine poderia abandonar a
si, mas nunca ao palco.
A
grande noite chegou e as cortinas foram abertas. Daniel, por alguns momentos,
parecia não lhe causar tamanho impacto. Talvez o segredo sejam as cortinas
vermelhas.
Ato III
O
ato final arrancou palmas de todo o teatro, até as paredes pareciam vibrar. Sem
enxergar definidamente os rostos daqueles que se colocaram de pé para
homenagear uma noite de pura arte, romance e magia, Jasmine sentia o som das
palmas percorrer o seu corpo provocando arrepios em sua pele... Era a maneira
mais pura e real de sentir o agradecimento daqueles que foram alcançados pela
arte de representar. Ela sabia... O triunfo não foi apenas seu, mas também
daquele que no momento segura sua mão com firmeza e sorri um sorriso
deslumbrante enquanto acena para o público. Naquela noite, os dois perceberam
que a empolgação transmitida pelo público foi diferente, mais pulsante e até
mesmo intrigante. O público talvez tenha presenciado não só uma representação
ensaiada e bem articulada, mas também uma confissão. A ansiedade contida nos
olhos de Jasmine e o calor nos movimentos de Daniel. Eles já haviam assumido, e
Jasmine, apesar de continuar sem reconhecer, tornou-se vulnerável ao que o
coração é capaz de ordenar.
As
cortinas se fecharam e o tumulto deu lugar ao silêncio delicado que cobria as
paredes do teatro. Os olhos escuros de Jasmine deixavam escapar verdades sobre
ser alcançável.
— Há um rastro de estrelas nos seus
olhos, Jasmine.
As roupas que eram abandonadas pelo chão eram como pedaços de uma
camuflagem involuntária. Não havia pressa, como Jasmine estava habituada. Aos
poucos ela percebia a sutileza que surgia através dos movimentos envolvidos
pelo carinho de Daniel. Seu corpo parecia dançar em um ritmo aveludado, cheio
de mistérios que estavam prestes a ser revelados. Finalmente, a entrega
desmedida. Longe do mundo saturado por amores malditos e poetas embriagados. As
cortinas vermelhas devidamente fechadas, o corpo nu e inteiro. Longe de
personagens ou da arte pré-fabricada, eram atos vivos, humanos e artisticamente
sublimes. Coberta pelo amor junto ao prazer que Daniel lhe concedia, Jasmine
assumiu o papel de revelar a si mesma nos braços de um homem. Mulher de lábios
vermelhos, cabelos longos e olhos escuros... Corajosamente, amante do mundo.
Seu corpo falava entre arrepios e Daniel reconhecia a grandiosidade do que
havia em suas mãos. A mulher inalcançável do Moulin Rouge, envolvida em seu
corpo, redescobrindo a utopia da Belle Epoque; L'amour.
—O que me diz
sobre correr o risco de amar? — Perguntou Daniel ao repousar a cabeça sobre os
seios de Jasmine.
—Lhe digo que mistérios passaram a
me atrair com mais intensidade desde o momento em que você me tocou.
Era dia dois de abril de 1912. Os últimos
suspiros da verdadeira boemia parisiense. A Paris de automóveis barulhentos,
artistas desventurados e cabarés cheios de contos que valem por toda uma época
de mulheres fortes, sedutoras e – aparentemente – inalcançáveis.
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