quinta-feira, 24 de maio de 2012

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Ana não sabia, mas ela carregava na alma não só um, mas três universos inteiros. Por isso a chuva, a melancolia e a insônia. Não da pra ser feito gente que só é gente quando se rasga e continuar sem marcas. O mundo deixa resquícios em Ana e essas marcas viram histórias a serem contadas em dias como esse. Dias em que fechamos todas as janelas para não sentirmos frio, mas iluminamos um mundo passado só pra ter certeza de que existimos.
E Ana, de fato, existiu.
Um fato curioso é o seu nascimento. Ana brotou de uma dor que não convém ser canalizada e guarda um tipo de beleza difícil de ser compreendida. Nem todos são capazes de tocá-la profundamente, mas isso não a entristece. Diz que seus mundos são para os raros. E mesmo com universos tão distintos e distantes, Ana não está imune às dores mundanas. Na verdade, ela é como a camada do passado que não nos forçamos a olhar. O rastro onde se escondem os nossos erros mais mesquinhos, e erros que não foram nossos, mas que mesmo assim fomos obrigados a pagar com o corpo e com as madrugadas cada deslize cometido.

Ana também é feita de nostalgia: O som do portão se abrindo e os assovios que diziam olá para a enorme casa pintada de azul. Um detalhe interessante é o sorriso meia-boca que Ana abre quando sente a coragem necessária para tocar nos seus dias mais puros e iluminados. Ela costuma contar histórias sobre como é se sentir protegida e quente. Certa vez, seus pais a deixaram por (quase) uma noite na casa de seus avós, prometeram voltar para lhe buscar na manhã seguida. Ana, desajeitada, e como sempre se metendo em lugares onde não lhe cabem, prendeu o dedo na porta do quarto. Chorando sem parar com os dedinhos roxos implorava para ter o colo da sua mãe e o carinho do seu pai. Seus avós ligaram urgentemente para os pais de Ana, e quando a menina soube que seus protetores estavam a caminho, colocou seu coração envolto em uma calmaria que nenhum dedinho roxo seria capaz de romper. Ana adormeceu antes mesmo que seus pais chegassem... Ao relatar essa breve história ela mantinha os olhos fixos na porta. Confessou que esta foi a última noite em que se sentiu verdadeiramente segura. Os dias (meses e anos) seguidos foram um misto de rosas murchas e vidros quebrados.

Agora Ana é um poço de solidão que se esconde em uma cidade não tão grande e em um apartamento não tão seguro. Ao invés dos assovios, ela possui apenas a conversa distante e barulhenta dos vizinhos no corredor. Ao invés do calor, Ana tem o medo (e uma porção de poemas pela metade). Por vezes ela cansa de se sustentar e então espera que o dia chegue ao fim o mais depressa possível. Ela precisa do pôr do sol pra se sentir viva, assim como precisamos do passado para sentirmos nem que seja a certeza duvidosa da nossa existência. Porque as dores, meus caros, é o que Ana possui de real ainda que não seja concreto.

Ela vive do lodo
e da água que escorre até os bueiros.

Para não tocarmos, e não ser visível. É exatamente esta a essência que compõe sua alma turbulenta. Ana é o não dito. As podridões que varremos para debaixo de sofá, e que nem a poesia nos permite ter por completo. Porque quando Ana nos toca, ela nos rompe e vai embora sem pausa para beijo de despedida e carta borrada por lágrimas de saudade.

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