terça-feira, 19 de junho de 2012

Intocáveis


Part. I


Nós não pretendíamos chegar a lugar algum. Os sonhos cabiam perfeitamente entre as paredes do nosso ateliê. Entre o nosso colchão, as cinzas do cigarro e a vitrola, havia segredos onde Nicole preferia não tocar. Por alguma razão ela sempre abandonou seus poemas pela metade, mas no fundo as marcas nas folhas causadas pelas suas lágrimas já eram o suficiente para tornar qualquer mísero verso em algo capaz de atravessar a alma.

Nicole brotou do meu silêncio. E de tudo aquilo que eu tinha medo.


Ela era semelhante a um borrão: Por mais desastroso e desesperador que possa parecer, é impossível excluir de si toda a beleza apenas pelo medo de ser triste. No dia em que a encontrei pela primeira vez, ela estava sentada em uma cafeteria com os cabelos desgrenhados e sujos de tinta. Na mão direita segurava uma caneta contra o papel, na mão esquerda agarrava o pingente de sua corrente com uma força notável. Nicole parecia sustentar uma agonia doída enquanto percorria cada canto do ambiente com os olhos. Foi assim que nos encontramos. Quando ela pousou seus olhos nos meus, acidentalmente. Era apenas o primeiro momento e Nicole já sabia como roubar as minhas palavras com uma astúcia assustadora. O que ocorreu nos segundos seguintes permanece intacto (existem detalhes que de tão belos e singelos, tornam-se inalcançáveis). E o bloco de notas que ela tinha em mãos naquela manhã chuvosa, hoje eu seguro durante todas as noites buscando encontrar alguns dos vestígios da sua alma que nem sempre sou capaz de capturar.


Nicole e eu arrumamos nossas malas e abandonamos o mundo que até então conhecíamos. O ateliê passou a delimitar o território do nosso universo e além deste, o único caminho que nós seríamos capazes de enfrentar, eram as estradas. E enfrentamos. Por quinze dias percorremos todo o litoral e nesse curto espeço de tempo descobrimos partes das nossas individualidades que por tanto tempo permaneceram escondidas.


- Mais um dia sem saber onde pousaremos nosso corpo. Isso não te assusta, amor? – Ela perguntou sem desviar os olhos do horizonte. Permanecia intacta, debruçada na janela do carro enquanto o vento beijava seus cabelos.


- Por que assustaria? Nós sonhamos com essa incerteza durante muito tempo para temer sua concretização, Nicole.


- Mas você sabe que eu tenho medo. Nossa cama parece mais segura do que este pôr-do-sol. Ele me engole e eu me sinto a criatura mais covarde do mundo por estar chorando. Existem pedaços dos nossos sonhos que nem mesmo nós dois fomos capazes de reconhecer. Pura covardia. Puro medo de nos derrubarmos com as nossas verdades mais podres. A gente precisa saber por onde ir, amor. Não posso perdê-lo na próxima virada. Nós desconhecemos o abismo que existe entre o espaço do nosso sonho e a realidade que nos corta.


Calei-me como todas as vezes em que Nicole roubava minha voz e meu choro. Como todas as vezes em que ela me tocava sem pudor… Ela é um misto de luz e sombras do qual não sou capaz de me desvencilhar.


- Eu amo você, meu bem. Agora cale seus medos mais absurdos e sonhe um pouco. Chega de pôr-do-sol. – Eu lhe disse enquanto ela se encolhia no banco do carro.


- Promete fazer um apanhador de sonhos pra mim quando voltarmos ao ateliê?


- Eu prometo. 


Nicole vem de um lugar perdido entre histórias reais e seus sonhos. Talvez seja esta a verdade que me torna incapaz de tê-la completamente envolta em meus braços. Eu a perdi numa daquelas madrugadas gélidas e calmas, quando não fui capaz de atravessar a janela que desenhava imagens do universo que Nicole escondia. E mesmo quando ela me encara sem trajes e sem medos, eu ainda sinto que parte dela não está presente. Talvez seja necessário rasgar todos os seus poemas e jogar fora todas as suas pinturas... Ela sempre será aquela que abandona a si mesma enquanto deixa que sua arte vá escapulindo e aderindo traços e formatos. No fundo sei que prefiro ter apenas um pedaço dela, o pedaço que se encaixa em meu corpo durante as noites longas e frias. Nos momentos em que nos encontramos, e logo, nos perdemos: Um no corpo do outro. São estas as noites em que Nicole não desperta chorando. A outra parte da sua alma que parece transcender em sua arte, eu prefiro que continue sendo guardada entre os segredos que recolhem sua magia, e que por vezes, liberta-se.


Como as borboletas que duram um dia,

e uma eternidade. Imortais. 

Um comentário:

  1. Bonita e invejante Nicole.
    Ah, "promete fazer um apanhador de sonhos pra mim"?

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