— Me explica, bebê.
— É como estar se desprendendo. E isso implica em
arrancar, como se fosse uma camada velha da sua pele. Caem centenas de células
o tempo inteiro, e cada uma carrega uma parte de mim. Uma parte que vira um
passado cheio de inocência e de arrependimentos também. Mas é um passado
bonito, não deixa de ser. E aí eu me deparo com uma pessoa totalmente diferente
no espelho, isso me assusta e ao mesmo tempo me acalma. Como se fosse uma
mulher que tomasse o lugar e as rédeas. Uma pessoa mais corajosa.
— Como no sonho dos
cavalos e do espelho! Fatalmente nos tornaremos aquela
mulher que não chora por nada, mas dentro, aquela lágrima... Que carrega o peso
de todas as outras, todas as fotografias que você viu sendo mastigadas. Não sei
se isso é bom. Lembra do Robert?
— Lembro sim.
— Ele ia experimentando tudo, mesmo
o que fazia mal, e a cada vez que ele experimentava, ele queria "subir de
nível", e se maltratar mais ainda, mais ainda... Pra ver até onde ele
podia chegar. E somos iguais a ele.
— É o
que a gente anda fazendo... Pagando pra ver.
— Que bom que tá com medo, bebê. Você precisa disso, igual a
mim.
— Isso
é uma coisa boa. Aliás, mais que isso. Porque... Eu não consigo me ver em uma
vida que corra para longe dos traços do Robert e tantos outros.
— Só não quero que
a gente tenha o mesmo fim que ele.
— Não teremos.
— Como sabe?
— Porque eu enxergo a Patti. O tempo
todo. Um faz parte do outro. O Robert é a parte mais destrutiva que a gente tem
aqui dentro. Ele é quem nos força a abrir a janela e sentir vontade de pular só
pra sentir o vento contra o rosto e a liberdade. Mas a Patti é quem corre,
entende? Ela sente o vento do mesmo jeito e consegue permanecer inteira.
— Mas... Às vezes sinto vergonha por
não ser como ele. Queria saber como é não medir consequências, agir com
instinto, sabe? É disso que somos feitos, desde o princípio. Por que a gente
não caminha por esse caminho?
— Eu também sinto. Porque isso nos torna um
pouco mais covarde, e a covardia é vergonhosa. Afinal de contas, de que vale
uma vida se não podemos vivê-la de maneira heroica?
— Eu sei que pessoas assim terão fins horríveis, mas eu queria não
saber disso, ou fingir que não sei, e não consigo.
— O Kurt se suicidou, o Robert morreu da mesma
forma que o Cazuza e o Renato... E eu choro às vezes por não ter a resposta
para essas indagações.
Mariane Cardoso & Isla Cezzani
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